Nunca estive em Chernobyl mas o Reator nº 4 está em mim.
As noticias chegaram até o Ocidente no terceiro dia do
desastre. Acompanhando-a veio a nuvem radioativa que cobriu a Europa, com maior
ou menor intensidade no quarto dia.
Noticiario do dia: https://www.youtube.com/watch?v=HLL8ZpeGV5s
A primeira imagem mostrada na TV italiana sugeria a
imobilidade mortal nas instalações.
No dia 1º de maio a nuvem já estava sobre o norte da Europa
chegando até Milão onde vivíamos Ruth e eu e
permaneceu até perder força a partir de 5 de maio.
Na sua composição elementos radioativos com atividade
variável entre aproximadamente um dia até períodos de atividade superiores a um
ano foram precipitados e inalados.
As autoridades anunciavam valores que representavam somente
o fator de precipitação. Como de solito, a “boa intenção” era não causar
pânico. Assim foram omitidos os gases radioativos que faziam parte da nuvem e
compunham um fator de impacto 40 vezes maior.
Nós já os respirávamos sem aviso prévio.
No 1º de Maio passei
todo o dia na Piazza del Duomo com uma exposição de fotos do carnaval
brasileiro (minha primeira exposição impressa em Cibachrome) no estande do PCI
que me valeu um agradável comentário do l´Unità. Ruth alternava a passagem pelo
estande com a circulação pela praça em festa.
O segundo dia começou com uma recomendação para que o
consumo de hortifrutigranjeiros fosse evitado e marcado pela sua desaparição
das gôndolas dos supermercados.
Próximo a nossa casa havia um supermercado da rede COOP.
Estava-se no inicio da primavera européia o que trazia uma tranqüilidade temporária
quanto a produtos industrializados de estoques remanescentes. Nossas compras
prioritárias foram arroz integral em grande volume e todos os cogumelos frescos
que ainda restavam nas gôndolas abandonados pelos consumidores em pânico.
Cogumelos são produzidos em ambientes controlados chamados na Itália de “fungaie”.
Também levamos cogumelos secos.
Arroz integral e cogumelos já eram conhecidos como quelantes
de radioatividade desde a bomba de Hiroxima e nós os incorporamos a nossa
dieta.
A situação que vivíamos todos na Europa da nuvem radioativa
era algo como estar na periferia distante de um ataque nuclear. Sabíamos que a
radiação permeava tudo o que fazíamos e também os nossos corpos. E que após a
nuvem desaparecer ela continuaria em nós,
nos solos, nos animais e águas. Ainda
assim não houve pânico nem histeria coletiva. Apenas resignação e consciência histórica.
Da nossa parte, lembramos entre nós Milton Nascimento:
Sei que nada será
como está
Amanhã ou depois de
amanhã
Resistindo na boca da
noite um gosto de sol.
As mulheres foram as primeiras a acusar o dano: muitas
tiveram seus ciclos desestruturados e menstruaram no “terceiro dia da nuvem” .
Só que ele não parava. No décimo dia
ligamos para um amigo artista plástico residente em Orbetello, na Toscana.
Fomos para lá e ele nos cedeu fraternalmente uma planta de cannabis indica que
cultivava em vaso na sua cobertura. Graças ao extrato* preparado aceleradamente
conseguimos normalizar a situação.
Tempo passado, Ruth fazia piada dizendo que
durante o uso do extrato ela tropeçava nos próprios pés.
De um certo modo podíamos nos considerar privilegiados. Estávamos
juntos há nove anos e tínhamos, em nossas andanças de casal sem filhos por
opção, tido oportunidade de praticar sobrevivencialismo.
Nunca falamos sobre isto com amigos fora da Europa e com o tempo,
mesmo entre nós. Só não dava pra esquecer. Só voltou a ser assunto com o diagnóstico
de CA de mama em 2002.
Ruth se foi levada por uma recidiva hepática do CA em 2007.
Ficamos eu e a saudade.
Nesses últimos dias, com a mídia lembrando os 30 anos de
Chernobyl, tenho tido flashbacks daquele tempo. A História teve como fazer as
contas e apesar dos governos, demonstrar a extensão do desastre**. Uma hipótese
da época, estávamos na Guerra Fria, apontava o acidente como a resposta
soviética a um outro “desastre” 2 anos antes em Bhopal, na India, numa planta
industrial da Union Carbide americana.
Há coisas que se deve partilhar antes de morrer sempre repete A.O., uma velha amiga
*Extrato hidroalcoolico de
cannabis indica a 60% (40% Grappa)