terça-feira, 26 de abril de 2016

Chernobyl e eu ...



Nunca estive em Chernobyl  mas o Reator nº 4 está em mim.

As noticias chegaram até o Ocidente no terceiro dia do desastre. Acompanhando-a veio a nuvem radioativa que cobriu a Europa, com maior ou menor intensidade no quarto dia.





A primeira imagem mostrada na TV italiana sugeria a imobilidade mortal nas instalações.
No dia 1º de maio a nuvem já estava sobre o norte da Europa chegando até Milão onde vivíamos Ruth e eu e  permaneceu até perder força a partir de 5 de maio.
Na sua composição elementos radioativos com atividade variável entre aproximadamente um dia até períodos de atividade superiores a um ano foram precipitados e inalados.

As autoridades anunciavam valores que representavam somente o fator de precipitação. Como de solito, a “boa intenção” era não causar pânico. Assim foram omitidos os gases radioativos que faziam parte da nuvem e compunham um fator de impacto 40 vezes maior.
Nós já os respirávamos sem aviso prévio.

No 1º de Maio passei  todo o dia na Piazza del Duomo com uma exposição de fotos do carnaval brasileiro (minha primeira exposição impressa em Cibachrome) no estande do PCI que me valeu um agradável comentário do l´Unità. Ruth alternava a passagem pelo estande com a circulação pela praça em festa.

O segundo dia começou com uma recomendação para que o consumo de hortifrutigranjeiros fosse evitado e marcado pela sua desaparição das gôndolas dos supermercados.

Próximo a nossa casa havia um supermercado da rede COOP. Estava-se no inicio da primavera européia o que trazia uma tranqüilidade temporária quanto a produtos industrializados de estoques remanescentes. Nossas compras prioritárias foram arroz integral em grande volume e todos os cogumelos frescos que ainda restavam nas gôndolas abandonados pelos consumidores em pânico. Cogumelos são produzidos em ambientes controlados chamados na Itália de “fungaie”. Também levamos cogumelos secos.

Arroz integral e cogumelos já eram conhecidos como quelantes de radioatividade desde a bomba de Hiroxima e nós os incorporamos a nossa dieta.

A situação que vivíamos todos na Europa da nuvem radioativa era algo como estar na periferia distante de um ataque nuclear. Sabíamos que a radiação permeava tudo o que fazíamos e também os nossos corpos. E que após a nuvem desaparecer  ela continuaria em nós, nos solos, nos animais  e águas. Ainda assim não houve pânico nem histeria coletiva. Apenas resignação e consciência histórica.

Da nossa parte, lembramos entre nós Milton Nascimento:
Sei que nada será como está
Amanhã ou depois de amanhã
Resistindo na boca da noite um gosto de sol.

As mulheres foram as primeiras a acusar o dano: muitas tiveram seus ciclos desestruturados e menstruaram no “terceiro dia da nuvem” . Só que ele não parava.  No décimo dia ligamos para um amigo artista plástico residente em Orbetello, na Toscana. Fomos para lá e ele nos cedeu fraternalmente uma planta de cannabis indica que cultivava em vaso na sua cobertura.  Graças ao extrato* preparado aceleradamente conseguimos normalizar a situação.

Tempo passado, Ruth fazia piada dizendo que durante o uso do extrato ela tropeçava nos próprios pés.

De um certo modo podíamos nos considerar privilegiados. Estávamos juntos há nove anos e tínhamos, em nossas andanças de casal sem filhos por opção, tido oportunidade de praticar sobrevivencialismo.

Nunca falamos sobre isto com amigos fora da Europa e com o tempo, mesmo entre nós. Só não dava pra esquecer. Só voltou a ser assunto com o diagnóstico de CA de mama em 2002.

Ruth se foi levada por uma recidiva hepática do CA em 2007. Ficamos eu e a saudade.

Nesses últimos dias, com a mídia lembrando os 30 anos de Chernobyl, tenho tido flashbacks daquele tempo. A História teve como fazer as contas e apesar dos governos, demonstrar a extensão do desastre**. Uma hipótese da época, estávamos na Guerra Fria, apontava o acidente como a resposta soviética a um outro “desastre” 2 anos antes em Bhopal, na India, numa planta industrial da Union Carbide americana.

Há coisas que se deve partilhar antes de morrer sempre repete A.O., uma velha amiga


*Extrato hidroalcoolico de cannabis indica  a  60% (40% Grappa)




sexta-feira, 1 de abril de 2016