segunda-feira, 26 de novembro de 2007

Sullus

Quem caminha num mercado andino vai acabar vendo, se estiver atento, cestos como esse. São os respeitadíssimos “Sullus” ou fetos de llamas secos. Antes que algum espanto judaico-cristão ocidental possa provocar mal entendidos é bom explicar: ninguém provoca abortos nesses simpáticos camélidos. A ocorrência do aborto espontâneo é extremamente comum entre as llamas. Os camponeses, observando uma prenhez interrompida, procuram pelos campos e recolhem o feto. Na conservação dele são auxiliados pelo próprio clima seco que impede a decomposição. Uma vez completamente desidratados são levados as feiras para venda.

O Sullu é um dos elementos fundamentais para uma oferenda (cha’lla) completa à Pachamama. São também usados no ritual da cha’lla da casa: quando uma casa nova fica pronta, antes da colocação do telhado, ela deve receber um sullu em cada um dos ângulos extremos, colocado em uma escavação junto do alicerce. Só depois a casa é enfeitada com cestos de flores e banhada simbolicamente com bebidas alcoólicas. O sincretismo provocado pela dominação religiosa católica e branca trouxe uma expressão muitas vezes usada em lugar de cha’lla: “glória missa”.

Quanto a Pachamama, é bom lembrar que a religião antiga andina é feita de conceitos puramente metafísicos. A sua transmissão, oral, fez com que a complexidade desses mesmos conceitos encontrasse, ao longo dos séculos, uma fluidez de formulação que tornou o pensamento religioso abstrato uma prática generalizada. A ocorrência de símbolos tem uma função pedagógica voltada para o inicio do aprendizado. Exemplos? A Pachamama é a “terra” , a Terra e, ao mesmo tempo uma entidade imaterial (mais “Grande Mãe” que deusa) que permeia tudo o que diz respeito a vida material. Solo, águas, colheitas, casas (lá feitas de adobe), pedras, animais, aves e humanos são o seu corpo e manifestação (al.: da sein). É o princípio feminino por excelência. Sem ela não haveria a Vida. É por isso que quando defrontamos alguma forma de vida (humana ou animal) morta dizemos, como que devolve o que cessou de viver a ela: “que se reciba!” Uma boa explicação que tive sobre isso veio de um amigo que não vejo a muito tempo, Rufino Paxsi, camponês e médico aymara na comunidade de Waraya. Perguntei-lhe se o sol era realmente “Inti”, um deus. A resposta, com a paciência que o caracterizava em relação aos Can’cas (gringos) bem intencionados começou pela explicitação de que o vocábulo “Inti” significava mais a luz que a estrela, daí a sua aplicação ao astro-rei simbolizando o Princípio Único . Quanto a ser o Sol um “deus supremo”, longe disso. “Os aymaras” disse, “não personificam as suas divindades. Quando você entende que sem a luz e o calor não haveria vida na Terra e você sabe que essa energia vem do alto, de algum lugar que não podemos ver, mas sabemos que existe, isso é o princípio de todas as coisas. Tão grande que a inteligência humana não o pode pensar. O Sol, grande como é, nós podemos entender. E é um pequeno símbolo para isso que não alcançamos definir.” Falou-me também da simbologia da fecundação da Terra pelo Sol para gerar o que é vivo. Ficou-me uma imagem-síntese dessa manhã que tinha começado com a recolha dos chuños um pouco antes do alvorecer: a Vida é o casamento da Terra com a Luz.