quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Sobre um cálice


Após a batalha de Marengo um jovem artesão da região, engajado de ultima hora nas tropas francesas encontrou ao retornar a sua oficina destruída pela passagem do exército austríaco. Buscando trabalho acaba por ser admitido ao serviço de um senhor que vivia a uma semana de marcha para o sul. Com suas habilidades auxiliava-o em um trabalho do qual nada entendia modelando retortas, construindo fornos e forjando tenazes. Vivia, já casado com uma moça da região, numa pequena casa próxima da do patrão. Durante todos os os 21 anos que ali passou notava que uma coisa curiosa ocorria com ele: de tempos em tempos ele parecia rejuvenescer como se a sua idade fosse a mesma do dia em que o conhecera. Aos poucos uma imensa vontade de expressar o que intuía do seu trabalho o levou a tomar um copo de madeira e, paciente e lentamente, iniciar a tarefa de decora-lo como uma espécie de diário. Por ser analfabeto esse recurso lhe permitiria contar a história da sua vida, como disse a esposa, sem trair os segredos do seu mestre. E assim o fez, paciente e humildemente. Na noite que antecedeu o vigésimo primeiro aniversário da sua admissão ao serviço daquele a quem ele, espontaneamente, chamava de Mestre notou que havia recoberto todo o espaço externo do copo até as bordas. Nesse momento ouve baterem a porta e sua esposa levanta-se para abri-la. Sentado a mesa da cozinha, com suas tintas e pincéis e nas mãos a sua obra, vê entrar o Mestre. Terminaste o teu trabalho, disse ele, e eu o meu. Amanhã parto para sempre e tudo o que tenho te pertence. Tinhas um copo e agora tens um cálice, o teu graal. Fizeste humildemente o teu trabalho e desvelaste para ti mesmo a Escada de Jacob. Não contaste o tempo e compreendeste a eternidade. Peço-te um ultimo favor. Vem ao amanhecer a minha casa e desperta-me pois aqueles que vem buscar-me chegarão cedo.

Com o primeiro claro da aurora o artesão dirigiu-se a casa e ao quarto do Mestre encontrando-o ainda adormecido nas suas roupas da noite anterior. Tão grande era a sua paz que não se percebia nem a mais leve respiração. Chama-o por três vezes sem resultado e ouvindo baterem a porta vai abri-la. Entram dois homens altos com roupas idênticas a do Mestre e perguntam com uma voz que parece encher toda a casa: Estás pronto? Sim, responde o Mestre com igual timbre e tom vindo ao encontro deles. Seu rosto tinha um brilho diferente, que parecia vir de dentro de seu corpo, ou talvez da sua alma.

Três dias depois, já instalados na nova casa, notou o Mestre Artesão que junto a outros dois nomes gravados na segunda fieira de pedras a partir do chão do lado direito da porta estava o nome de seu antecessor seguido da palavra "VIVO".

No outono de 1903 um cortejo fúnebre acompanhado apenas pelo marido levava ao cemitério local o corpo da esposa que teria, segundo os vizinhos, os seus 50 anos de idade. Durante o inverno de 1934 os filhos dos antigos vizinhos viram marcas de passos na fina camada de neve que sugeriam ter o morador saído para um passeio matinal.


A casa ainda está lá. Apenas parece desabitada. O que ninguém percebeu é que um quarto nome apareceu gravado na pedra seguido, naturalmente, da palavra

para Rodrigo de Haro et
in memoriam de Gustav Meyrink